All the King’s men




Este texto, publicado na revista Internacional Situacionista (nº 8, janeiro de 1963, p. 29-33) é teoricamente um dos mais ricos documentos da reflexão situacionista sobre a linguagem. Nele, o programa das vanguardas estéticas encontra um radical reembasamento em vista dos então novos fenômenos sociais de reificação da linguagem e da comunicação, fenômenos que, hoje, já nos são bem familiares. Ao mesmo tempo em que aponta os efeitos da expressão técnica da economia mercantil sobre a experiência social lingüístico-comunicativa, o texto insiste e aposta na potencialidade poética da linguagem e da escrita, potencialidade esta que, para os situacionistas, significa a capacidade de recriação de sentidos, de desobediência ao dado, de reinvenção do existente, na e pela linguagem. Publicado sem assinatura, sua autoria se deve, muito possivelmente, a Guy Debord, que, enquanto diretor da revista, a redigia em sua maior parte. (Esta tradução foi feita com base na seguinte edição: Internationale Situationniste 1958-1969. Texte intégral des 12 numéros de la révue. Edition augmentée. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1997). Tradução: Emiliano Aquino (agradeço a revisão e sugestões de Sybil Safdie Douek).

O problema da linguagem está no centro de todas as lutas pela abolição ou manutenção da alienação presente; inseparável do conjunto do terreno destas lutas. Vivemos na linguagem como no ar viciado. Ao contrário do que estimam as pessoas de espírito, as palavras não brincam. Elas não fazem amor, como acreditava Breton, a não ser em sonho. As palavras trabalham para a organização dominante da vida. E contudo, elas não estão robotizadas; para a infelicidade dos teóricos da informação, as palavras não são elas mesmas “informacionistas”; nelas, manifestam-se forças que podem frustrar os cálculos. As palavras coexistem com o poder numa relação análoga àquela que os proletários (no sentido clássico, tanto quanto no sentido moderno deste termo) podem manter com o poder. Empregadas durante quase todo o tempo, utilizadas em tempo pleno, em pleno sentido e em pleno não-sentido, elas permanecem em algum lado radicalmente estrangeiras.
O poder dá somente a carteira de identidade falsa das palavras; ele lhes impõe um livre trânsito, determina seu lugar na produção (onde algumas fazem visivelmente horas extras); libera-lhes de algum modo sua caderneta de pagamento. Reconheçamos a seriedade do Humpty-Dumpty de Lewis Carroll que considera que toda a questão, para decidir o uso das palavras, é a de “saber quem será seu senhor, e ponto final”. E ele, patrão social na matéria, afirma que paga em dobro àquelas que ele usa muito. Compreendamos também o fenômeno de insubmissão das palavras, sua fuga, sua resistência aberta, que se manifesta em toda a escrita moderna (desde Baudelaire até os dadaístas e Joyce), como o sintoma da crise revolucionária de conjunto na sociedade.
Sob o controle do poder, a linguagem designa sempre outra coisa que o vivido autêntico. É precisamente aí que reside a possibilidade de uma contestação completa. A confusão se desvela tal, na organização da linguagem, que a comunicação imposta pelo poder se revela como uma impostura e um logro. É em vão que um embrião de poder cibernético se esforce por colocar a linguagem sob a dependência das máquinas que ele controla, de tal modo que a informação seja doravante a única comunicação possível. Mesmo neste terreno, resistências se manifestam, e se está no direito de considerar a música eletrônica como uma tentativa, evidentemente ambígua e limitada, de reverter a relação de dominação, desviando (en détournant) as máquinas em proveito da linguagem. Mas a oposição é bem mais geral, bem mais radical. Ela denuncia toda “comunicação” unilateral, na arte antiga como no informacionismo moderno. Ela chama a uma comunicação que arruina todo poder separado. Aí onde há comunicação, não há Estado.
O poder vive de furto encoberto. Ele não cria nada, ele recupera. Se ele criasse o sentido das palavras, não haveria poesia, mas unicamente a “informação” útil. Não se poderia jamais se opor na linguagem, e toda recusa lhe seria exterior, seria puramente letrista. Ora, o que é a poesia, senão o momento revolucionário da linguagem, não separável enquanto tal dos momentos revolucionários da história e da história da vida pessoal?
A apropriação da linguagem pelo poder é assimilável à sua apropriação da totalidade. Somente a linguagem que perdeu toda referência imediata à totalidade pode fundar a informação. A informação é a poesia do poder (a contrapoesia da manutenção da ordem), é a trucagem mediatizada do que é. Inversamente, a poesia deve ser entendida enquanto comunicação imediata no real e modificação real deste real. Ela não é outra coisa que a linguagem libertada, a linguagem que reconquista sua riqueza e, quebrando seus signos, recobra ao mesmo tempo as palavras, a música, os gritos, os gestos, a pintura, as matemáticas, os fatos. A poesia depende, portanto, do nível da maior riqueza em que, em um estágio dado da formação econômico-social, a vida pode ser vivida e mudada. É então inútil precisar que esta relação da poesia para com sua base material na sociedade não é uma subordinação unilateral, mas uma interação.
Reencontrar a poesia pode se confundir com reinventar a revolução, como o provam à evidência algumas fases das revoluções mexicana, cubana ou congolesa. Entre os períodos revolucionários em que as massas, agindo, acedem à poesia, pode-se pensar que os círculos da aventura poética permanecem os únicos lugares em que subsiste a totalidade da revolução, como virtualidade inacabada, mas próxima, sombra de uma personagem ausente. De modo que, o que aqui é chamado de aventura poética é difícil, perigoso e, em todo caso, jamais garantido (de fato, trata-se da soma das condutas quase impossíveis numa época). Pode-se somente estar seguro daquilo que não é mais a aventura poética de uma época: sua falsa poesia reconhecida e permitida. Assim, enquanto o surrealismo, no tempo de seu assalto contra a ordem opressiva da cultura e do cotidiano, podia justamente definir seu armamento numa “poesia, se preciso sem poemas”, trata-se hoje para a I.S. de uma poesia necessariamente sem poemas. E tudo o que dizemos da poesia não concerne em nada a obsoletos reacionários de uma neoversificação, mesmo alinhada aos menos antigos dos modernismos formais. O programa da poesia realizada não é nada menos do que criar ao mesmo tempo acontecimentos e sua linguagem, inseparavelmente.
Todas as linguagens fechadas – as dos agrupamentos informais da juventude, as que as vanguardas atuais, no momento em que elas se buscam e se definem, elaboram para seu uso interno, as que, outrora, transmitidas em produção poética objetiva para o exterior puderam chamar-se “trobar clus” ou “dolce stil nuovo” – todas têm por objetivo, e resultado efetivo, a transparência imediata de uma certa comunicação, do reconhecimento recíproco, do acordo. Mas semelhantes tentativas são o feito de grupos restritos, em diversos aspectos isolados. Os acontecimentos que eles puderam organizar, as festas que eles puderam dar-se a si mesmos, tiveram que permanecer nos mais estreitos limites. Um dos problemas revolucionários consiste em federar esses tipos de soviets, de conselhos da comunicação, a fim de inaugurar em todo lugar uma comunicação direta que não tenha mais que recorrer à rede da comunicação do adversário (isto é, à linguagem do poder) e possa, assim, transformar o mundo segundo seu desejo.
Não se trata de colocar a poesia a serviço da revolução, mas sim de colocar a revolução a serviço da poesia. É somente assim que a revolução não trai seu próprio projeto. Não reeditaremos o erro dos surrealistas colocando-se ao seu serviço quando precisamente ela não existia mais. Ligado à lembrança de uma revolução parcial rapidamente abatida, o surrealismo se tornou rapidamente um reformismo do espetáculo, uma crítica de uma certa forma do espetáculo reinante, conduzida no interior da organização dominante deste espetáculo. Os surrealistas parecem ter negligenciado o fato de que o poder impõe, para todo melhoramento ou modernização internos do espetáculo, sua própria leitura, uma decriptação da qual ele tem o código.
Toda revolução nasceu na poesia, fez-se de início pela força da poesia. Este é um fenômeno que escapou e continua a escapar aos teóricos da revolução – é verdade que não se pode compreendê-lo se se atém ainda à velha concepção da revolução ou da poesia – mas que geralmente foi sentido pelos contra-revolucionários. A poesia, lá onde ela existe, lhes faz medo; eles se obstinam a se desembaraçarem dela através de diversos exorcismos, do auto da fé[1] à pesquisa estilística pura. O momento da poesia real, que “tem todo o tempo diante dela”, quer a cada vez reorientar, conforme seus próprios fins, o conjunto do mundo e todo o futuro. Tanto quanto dure, suas reivindicações não podem conhecer compromissos. Ele recoloca em jogo as dívidas não quitadas da história. Fourier e Pancho Villa, Lautréamont et os dinamiteiros das Astúrias – cujos sucessores inventam agora novas formas de greves –, os marinheiros de Kronstadt ou de Kiel e todos aqueles que, no mundo, com e sem nós, se preparam para lutar pela longa revolução, são também os emissários da nova poesia.
A poesia é cada vez mais claramente, enquanto lugar vazio, a antimatéria da sociedade de consumo, porque ela não é uma matéria consumível (segundo os critérios modernos do objeto consumível: equivalente para uma massa passiva de consumidores isolados). A poesia não é nada quando ela é citada, ela pode somente ser desviada (détournée), recolocada em jogo. O conhecimento da poesia antiga é, de outro modo, somente exercício universitário, realçando funções de conjunto do pensamento universitário. A história da poesia é somente, então, uma fuga diante da poesia da história, se entendermos por este termo não a história espetacular dos dirigentes, mas sim a da vida cotidiana, de sua ampliação possível; a história de cada vida individual, de sua realização.
Não se deve aqui deixar equívoco sobre o papel dos “conservadores” da poesia antiga, daqueles que aumentam a sua difusão à medida que, por razões outras, o Estado faz desaparecer o analfabetismo. Essas pessoas representam somente um caso particular dos conservadores de toda a arte dos museus. Uma massa de poesia é normalmente conservada no mundo. Mas não há em parte nenhuma os lugares, os momentos, as pessoas para revivê-la, comunicá-la entre si, fazer uso dela. Admitindo-se que isto não pode ser jamais senão no modo do desvio, porque a compreensão da poesia antiga mudou tanto por perda quanto por aquisição de conhecimentos; e porque em cada momento em que a poesia antiga pode ser efetivamente reencontrada, sua presentificação em momentos particulares lhe confere um sentido largamente novo. Mas, sobretudo, uma situação em que a poesia é possível não poderia restaurar nenhum fracasso político do passado (este fracasso sendo o que fica, invertido, na história da poesia, como êxito e monumento poético). Ela vai naturalmente em direção à comunicação – e às chances de soberania – de sua própria poesia.
Estreitamente contemporâneos da arqueologia poética que restitui seleções de poesia antiga recitadas em discos por especialistas, para o público do novo analfabetismo constituído pelo espetáculo moderno, os informacionistas empreenderam combater todas as “redundâncias” da liberdade para transmitir simplesmente ordens. Os pensadores da automatização visam explicitamente um pensamento teórico automático, por fixação e eliminação das variáveis na vida como na linguagem. Eles não param de achar ossos em seu queijo![2] As máquinas de tradução, por exemplo, que começam a assegurar a uniformização planetária da informação tanto quanto a revisão informacionista da antiga cultura, estão submetidas a seus programas preestabelecidos, aos quais deve escapar toda acepção nova de uma palavra, assim como suas ambivalências dialéticas passadas. Assim, ao mesmo tempo, a vida da linguagem – que se liga a cada avanço da compreensão teórica: “As idéias melhoram. O sentido das palavras participa disso”[3] – se acha expulsa do campo maquinista da informação oficial, mas também o pensamento livre pode se organizar em vista de uma clandestinidade que será incontrolável pelas técnicas de polícia informacionista. A pesquisa de sinais indiscutíveis e de classificação binária instantânea vai tão claramente no sentido do poder existente, que ela dirá respeito à mesma crítica. Até em suas formulações delirantes, os pensadores informacionistas se comportam como pesados precursores diplomados de amanhãs que escolheram e que são justamente os que modelam as forças dominantes da sociedade atual: o reforço do Estado cibernético. Eles são os homens lígios de todos os suseranos da feudalidade técnica que se consolida atualmente. Não há inocência em sua bufonaria, eles são os bobos da corte.
A alternativa entre o informacionismo e a poesia não diz mais respeito à poesia do passado; assim como nenhuma variante daquilo que se tornou o movimento revolucionário clássico não pode mais, em nenhum lugar, ser contado numa alternativa real em vista da organização dominante da vida. É de um mesmo julgamento que extraímos a denúncia de uma desaparição total da poesia nas antigas formas em que ela pôde ser produzida e consumida, e o anúncio de seu retorno sob formas inesperadas e operantes. Nossa época não deve mais escrever instruções poéticas, mas executá-las.

[1]. Em português, no original.
[2]. “Ils n’ont pas fini de trouver des os dans leur fromage !”. Uma possível equivalência em nossa língua talvez pudesse ser a de: “Encontrar pêlos em ovo”
[3]. Lautréamont, Poesias II. Trad. br. C. Willer. São Paulo: Iluminuras, 1997, p. 277.