"Pessoas que caminhavam pelo Centro da Capital cearense relatam ter visto outras saqueando as lojas e acusam a polícia de 'abafar' o caso para não causar pânico à população". (Diário do Nordeste, on line, 24/12/2007. 11:47 h)
As notícias são desencontradas. A polícia nega veementemente que haja havido um arrastão no centro de Fortaleza, ontem à tarde. Depoimentos de populares aos jornais dizem o contrário. Neste caso, porém, pouco importam os fatos. Por quê? Por um motivo simples. O que realmente chama a atenção é que esses depoimentos narram não simplesmente um arrastão de assaltos e roubos, mas, verdadeiramente, uma série de saques às lojas. Eles falam de homens entrando em lojas e se apropriando de mercadorias, saindo com eletrodomésticos, confecções, calçados ... - assim teria sido na Rabelo, na Otoch, C&A, Lojas Americanas, dentre outras. Se o sentimento de insegurança pessoal explica, como já observou parcialmente um funcionário do espetáculo, que um boato sobre a existência de um arrastão tenha efetivamente apavorado centenas ou milhares de pessoas, há que se perguntar por que a imaginação coletiva produziu cenas de saques em lojas. Naturalmente, a insegurança que produz na imaginação coletiva um arrastão não é apenas a insegurança policial; é este o limite do comentário de um certo repórter fotográfico. A verdadeira insegurança é outra: é, antes de tudo, essa insegurança da condição de vida proletária, numa cidade e num Estado em que a miséria aumenta cada vez mais, tanto de modo relativo quanto absoluto. Pode ser que, nesse caso, seja mais aprazível imaginar que as possibilidades da vida insegura se realizem mais completamente numa insegurança policial que é individual, mas também coletiva; e, nesse caso, por ser também coletiva, sente-se deste modo um pouco mais seguro, por uma pertença qualquer a uma situação comum. Sempre que indivíduos se fazem massa, em que ocorre a regressão do Eu a uma psique de massa, a fobia coletiva é disso uma das manifestações mais próprias. A fobia coletiva, de algum modo, protege o indivíduo de seus próprios medos. O mais interessante, contudo, é que a imaginação coletiva produziu não apenas um suposto arrastão, mas, ao descrevê-lo, fê-lo com características de um saque. Retomemos esta imagem: homens que entram nas lojas e arrancam dali as mercadorias. Não se trata mais aí de arrastão, repito; mas, de saque. E o que é o saque? Nada mais do que a reconversão da mercadoria à condição de valor de uso, tão-simplesmente; um valor de uso a que se tem acesso diretamente, sem, portanto, qualquer mediação monetária. Por que uma multidão imagina a ocorrência de um saque, ainda que sob o disfarce imaginário de um arrastão? Talvez porque a psique de massa se manifeste não apenas na forma do medo, mas também na forma da destruição; e, neste caso, da destruição da forma-mercadoria. Durante as últimas semanas, as mercadorias têm chamado, convocado, pedido mesmo, aos consumidores, que as consumam. No imaginário popular, no qual se guardam e se refazem as imagens dos saques dos proletarizados que vêm à cidade grande nas épocas de secas, parece haver um desejo sim de atender ao chamado das mercadorias que querem ser consumidas; não, porém no modo mercantil, mas sim na destruição dessa forma. Uma festa popular, uma dépense comunitária de valores de uso, ocorreu ontem no centro de Fortaleza; uma festa em que a mercadoria foi violentamente sacrificada e seu uso reinventado. O proletariado pobre produziu imaginariamente seus heróis; e rapidamente os transformou em bandidos. Já muito se falou na ambigüidade do bandido; no medo e no fascínio que ele provoca. Melhor seria dizer: no fascínio que se transforma em medo. Se isso for verdade, ontem em Fortaleza, ocorreu primeiramente um imaginário saque proletário às cidadelas da mercadoria, um saque imaginário que, por não ser conscientemente querido, logo se transformou em arrastão, pânico, pavor coletivo... uma desagradável experiência, gostosa de ser imaginada e contada por cada uma das suas suas reais ou imaginárias testemunhas, que se apressam em dizer que a viram, o que nela viram... e desejaram.