Posições situacionistas sobre a circulação

Paul-Henry Chombart de Lauwe, Trajets pendant une anée d'une jeune fille du XVIe arrondissement
[ Trajetos realizados durante um ano por uma jovem do 16º arrondissement, em Paris].

O texto abaixo, escrito por Guy Debord em 1959, e publicado no nº 3 da revista Internacional situacionista, em dezembro do mesmo ano, antecipa e prepara as teses d'A sociedade do espetáculo sobre a transformação - pelo capitalismo espetacular - da cidade moderna em um "pseudocampo", fenômeno que expressa a destruição, ao mesmo tempo, do campo e da cidade; e antecipa também o texto já publicado neste blog, O planeta doente, de 1972. Se seguirmos as pistas desses textos, concluiremos que a destruição do planeta começou com a destruição da cidade, e a destruição da cidade com a paralisia da história, que nela nasceu. Enlouquecida, a mercadoria continua sua luta contra seus próprios pressupostos históricos, geográficos e naturais. "Houve história, não há mais; houve cidade, não há mais; houve campo, não há mais": eis a palavra da coisa, sua santíssima trindade. A presente tradução está no livro: Apologia da Deriva - Escritos situacionistas sobre a cidade (Paola Berenstein Jacques (organização) / Ed. Casa da Palavra), que, contudo, resolveu, não se sabe por que, mudar o título para "Os situacionistas e o trânsito", eliminando assim a ambigüidade, e também a disputa dialética, do termo "circulação", que aponta para a luta de classes em torno do espaço urbano e, portanto, da questão se sobre ele dominarão os homens ou as coisas. Para sua publicação aqui, retirei-o do antigo endereço do blog "Apocalipse motorizado":



1- O erro de todos os urbanistas é considerar o automóvel individual (e seus subprodutos, como a motocicleta) essencialmente como meio de transporte. A rigor, ele é a principal materialização de um conceito de felicidade que o capitalismo desenvolvido tende a divulgar para toda a sociedade. O automóvel como supremo bem de uma vida alienada e, inseparavelmente, como produto essencial do mercado capitalista está no centro da mesma propaganda global: ouve-se com frequência, este ano, que a prosperidade econômica norte-americana dependerá em breve do êxito do slogan: "Dois carros por família".

2- O tempo gasto nos transportes, bem como observou Le Corbusier, é um sobretrabalho que reduz a jornada da vida chamada livre.

3- Precisamos passar do trânsito como suplemento do trabalho ao trânsito como prazer.

4- Querer refazer a arquitetura em função da existência atual, maciça e parasitária dos carros individuais é deslocar os problemas com grave irrealismo. É preciso refazer a arquitetura em função de todo o movimento da sociedade, criticando todos os valores efêmeros, ligados a formas de relações sociais condenadas (a família é a primeira delas).

5- Mesmo que seja possível admitir provisoriamente, num período de transição, a divisão absoluta entre zonas de trabalho e zonas de habitação, será necessário ao menos prever uma terceira esfera: a da vida em si (esfera da liberdade, dos lazeres - a verdade da vida). Sabe-se que o urbanismo unitário não tem fronteiras; pretende constituir uma unidade total do meio humano no qual as separações do tipo trabalho-lazer e coletivo-vida privada serão dissolvidas. Mas, antes, a ação mínima do urbanismo unitário é o terreno dos jogos estendido a todas as construções desejáveis. Esse terreno terá o grau de complexidade de uma cidade antiga.

6- Não se trata de combater o automóvel como um mal. Sua exagerada concentração nas cidadas é que leva à negação de sua função; É claro que o urbanismo não deve ignorar o automóvel, mas menos ainda aceitá-lo como tema central. Deve trabalhar para o seu enfraquecimento. Em todo caso, pode-se prever sua proibição dentro de certos conjuntos novos assim como em algumas cidades antigas.

7- Quem julga que o automóvel é eterno não pensa, até do mero ponto de vista técnico, nas futuras formas de transporte. Por exemplo, certos modelos de helicóptero individuais que estão agora sendo testados pelo exército dos Estados Unidos encontrar-se-ão ao alcance do público talvez daqui a menos de vinte anos.

8- A ruptura dialética do meio humano em favor dos automóveis (há projetos de aberturas de auto-estradas em Paris que acarretarão a destruição de milhares de moradias, equanto a crise habitacional se agrava cada vez mais) disfarça a própria irracionalidade sob explicações pseudopráticas. Mas sua verdadeira necesidade práticacorresponde a um determinado estado social. Os que julgam os dados do problema permanentes querem, de fato, crer na permanência da sociedade atual.

9- Os urbanistas revolucionários não se preocuparão apenas com a circulação das coisas, nem apenas com homens paralisados num mundo de coisas. Tentarão romper essas cadeias topológicas por meio de uma experimentação de terrenos, para que os homens transitem pela vida autêntica.