"A comunicação não existe jamais em outro lugar que não seja na ação comum. E os mais surpreendentes exageros da incompreensão estão, assim, ligados ao excesso de não-intervenção"
Considero esse texto um dos mais importantes da reflexão situacionista. Publicado na IS nº 7 (abril de 1962, p. 20-24), Comunicação prioritária retoma (ao lado de All the King's men e O sentido do deperecimento da arte) a discussão da vanguarda histórica sobre a linguagem, encaminhando-a no sentido do gravíssimo e central problema dos nossos tempos: o da comunicação prática. É por essa via que os situacionistas buscam retomar, nas condições do capitalismo espetacular, as ligações históricas da vanguarda do entreguerras com as experiências dialogais dos conselhos operários no primeiro quarto do século 20. Nesse texto, eles retomam também a oposição entre informação e comunicação, que motivou alguns textos de Walter Benjamin. E, antes dos "filósofos de 68" (aqueles que só se tornaram tais depois de 68, surfando em seu "sucesso" acadêmico-midiático), preparam já o anúncio - que farão depois em All the King's men - da necessidade de redes, de soviets de comunicação prática federados: "Um dos problemas revolucionários consiste em federar esses tipos de soviets, de conselhos da comunicação, a fim de inaugurar em todo lugar uma comunicação direta que não tenha mais que recorrer à rede da comunicação do adversário (isto é, à linguagem do poder) e possa, assim, transformar o mundo segundo seu desejo".
A questão do poder é tão bem escondida, nas teorias sociológicas e culturais, que os especialistas podem derramar tinta em milhares de páginas sobre a comunicação ou os meios de comunicação de massa na sociedade moderna, sem jamais observar que a comunicação da qual eles falam é de mão única, os consumidores de comunicação não tendo nada a responder. Na pretensa comunicação, há uma rigorosa divisão de tarefas, que recorta finalmente a divisão mais geral entre organizadores e consumidores do tempo na sociedade industrial (o qual integra e enforma o conjunto do trabalho e dos lazeres). Aquele que não é incomodado pela tirania exercida sobre sua vida neste nível, não compreende nada da sociedade atual; e se encontra, portanto, perfeitamente qualificado a pintar, da sociedade atual, todos os afrescos sociológicos. Todos aqueles que se inquietam ou se maravilham diante desta cultura de massa que, através dos mass-media, unificados planetariamente, cultiva as massas e, ao mesmo tempo, “massifica” a “alta cultura”, esquecem somente que a cultura, mesmo alta, está agora enterrada nos museus, inclusive suas manifestações de revolta e de autodestruição. E que as massas – das quais, finalmente, todos somos – são mantidas fora da vida (da participação da vida), fora da ação livre: em subsistência, no modo do espetáculo. A lei atual é que todo mundo consuma a maior quantidade possível de nada; inclusive mesmo o nada respeitável da velha cultura perfeitamente separada de sua significação original (o cretinismo progressista se enternecerá sempre ao ver o teatro de Racine televisado, ou os Yakoutes lerem Balzac: justamente, ele não consideraria outro progresso humano).
A noção reveladora do bombardeamento de informações deve ser entendida em seu sentido mais largo. Hoje, a população é submetida permanentemente a um bombardeio de imbecilidades que não é de modo algum dependente dos mass-media. E, sobretudo, nada seria mais falso, mais digno da esquerda antediluviana do que imaginar esses mass-media em concorrência com outras esferas da vida social moderna na quais os problemas reais das pessoas seriam seriamente postos. A Universidade, as Igrejas, as convenções da política tradicional ou a arquitetura emitem também fortemente a xiado de incoerentes trivialidades que tenderá, anárquica mas imperativamente, a modelar todas as atitudes da vida cotidiana (como vestir-se, quem encontrar, como contentar-se). Qualquer um dos sociólogos da “comunicação”, para quem a idéia banal de efeito infalível será a de opor a alienação do empregado dos mass-media à satisfação do artista, este podendo se identificar à sua obra e se justificar por ela, não fará nada a não ser expor sempre sua incapacidade eufórica de conceber a alienação artística, ela mesma.
A teoria da informação ignora, logo de cara, o principal poder da linguagem, que é o de se combater e de se ultrapassar, em seu nível poético. Uma escrita que tende ao vazio, à neutralidade perfeita do conteúdo e da forma, pode apenas se desenvolver em função de uma experimentação matemática (como a “literatura potencial” que é o ponto final da longa página branca escrita por Queneau). Apesar das soberbas hipóteses de uma “poética informacional” (Abraham Moles), a enternecedora segurança de seus contra-sensos sobre Schwitters ou Tzara, os técnicos da linguagem não compreenderão jamais senão a linguagem da técnica. Eles não sabem o que julga tudo isso.
Considerada em toda sua riqueza, a propósito do conjunto da práxis humana e não a propósito da aceleração das operações de contas correntes postais pelo uso dos cartões perfurados, a comunicação não existe jamais em outro lugar que não seja na ação comum. E os mais surpreendentes exageros da incompreensão estão, assim, ligados ao excesso de não-intervenção. Nenhum exemplo poderia ser mais claro que a longa e lamentável história da esquerda francesa diante da insurreição popular na Argélia. A prova de morte da antiga política, na França, foi dada não somente pela abstenção da quase-totalidade dos trabalhadores, mas mais ainda, sem dúvida, pela tolice política da minoria resolvida a agir: assim, as ilusões de militantes de extrema-esquerda acerca da “frente popular” podem ser qualificadas de ilusões ao décimo grau, pois, em primeiro lugar, esta fórmula era rigorosamente impraticável neste período, mas, também, ela tinha largamente provado desde 1936 que era uma arma contra-revolucionária particularmente segura. Se as mistificações das velhas organizações políticas revelaram aqui seu desmoronamento, nenhuma política nova surgiu. Com efeito, o problema argelino aparecia como um dos arcaísmos franceses, na medida em que a principal tendência na França é a ascensão ao standing do capitalismo moderno. Os fenômenos ainda inoficiais, “selvagens”, de decepção e de recusa que acompanham este desenvolvimento não se consideravam em nada ligados à luta dos argelinos subdesenvolvidos. Para quem não distingue no futuro a realidade de uma contestação radical comum, a comunidade de interesses aparentemente tão diferentes hoje se funda somente no imperativo das lembranças (o que fazia – e, mais freqüentemente, o que deveria fazer – o antigo movimento operário para apoiar os explorados das colônias). De modo que alguns reflexos tornados eles mesmos arcaicos, portanto, abstratos, constituíam a única solidariedade considerada: era aguardar que esta eterna esquerda francesa mitológica, PC-PSU-SFIO, e o GPRA se comportassem (consideradas suas diversas “inabilidades” ou “traições”) como duas seções da IIIª Internacional. Tudo o que sobreveio desde 1920 parece, no entanto, mostrar que uma crítica fundamental destas soluções é inevitável em todo lugar; e diretamente posta para os argelinos, forçosamente, em razão sua atual luta armada. A solidariedade internacionalista, se não é degradada em moralismo de cristãos de esquerda, apenas pode ser uma solidariedade entre os revolucionários dos dois países. Isto supõe evidentemente que na França eles existam; e, na Argélia, que se distingam seus interesses no futuro próximo, quando a atual frente nacional estará diante da escolha sobre a natureza de seu poder.
As pessoas que procuravam levar adiante uma ação de vanguarda na França, nesse período, foram divididas entre, de um lado, seu medo de se separarem totalmente das antigas comunidades políticas (embora soubessem de seu grau de glaciação avançada) e, em todo caso, de sua linguagem; e, de outro lado, um certo desprezo pela emoção real de alguns setores – os estudantes, por exemplo – interessados na luta contra o extremismo colonialista, por causa da complacência que ali se manifestava com relação a uma antologia dos arcaísmos políticos (unidade de ação sem exclusividade contra o fascismo etc.).
Nenhum grupo soube utilizar essa ocasião, de uma maneira exemplar, ligando o programa máximo da revolta virtual da sociedade capitalista a um programa máximo da revolta atual dos colonizados; o que se explica, naturalmente, pela fraqueza de tais grupos, mas esta fraqueza mesma não deve jamais ser considerada como uma desculpa: bem ao contrário, como um defeito de funcionamento e de rigor. Não é concebível que uma organização que represente a contestação vivida pelas pessoas e que sabe lhes falar dela, fique frágil; ainda que ela fosse duramente reprimida.
A separação completa dos trabalhadores da França e da Argélia, da qual é preciso compreender que não estava principalmente no espaço, mas no tempo, levou a este delírio da informação, mesmo “de esquerda”, que fez com que no dia seguinte ao 8 de fevereiro, em que a polícia matou 8 manifestantes franceses, os jornais falassem dos choques mais sangrentos constatados em Paris desde 1934, sem mais pensar que, menos de quatro meses antes, os manifestantes argelinos de 18 de outubro tinham sido ali massacrados às dezenas. Ou que permitiu a um “Comitê antifascista do bairro Saint-German-des-Près”, em março, escrever num cartaz: “O povo francês e o povo argelino impuseram a negociação...”, sem se incomodar pelo ridículo desta enumeração destas duas forças, e nesta ordem.
Num momento em que a realidade da comunicação está tão profundamente apodrecida, não é surpreendente que se desenvolva em sociologia o estudo mineralógico das comunicações petrificadas. Nem que, na arte, a canalha neodadaísta redescubra a importância do movimento Dadá como positividade formal a explorar ainda, após tantas outras correntes modernistas que, dele, já adotaram o que podiam desde os anos 20. Esforça-se por fazer esquecer o quanto o dadaísmo autêntico foi aquele da Alemanha e até que ponto ele esteve ligado à ascensão da revolução alemã após o armistício de 1918. A necessidade de uma tal ligação não mudou para quem traz hoje uma posição cultural nova. Simplesmente, é preciso descobrir este novo ao mesmo tempo na arte e na política.
A simples anticomunicação emprestada hoje do dadaísmo, pelos mais reacionários defensores das mentiras estabelecidas, é sem valor numa época em que a urgência é a de criar, no nível mais simples como no mais complexo da prática, uma nova comunicação. A continuição mais digna do dadaísmo, sua legítima sucessão, é preciso reconhecê-la no Congo do verão de 1960. A revolta espontânea de um povo mantido, mais do que em qualquer lugar, na infância, no momento em que cambaleou a racionalidade, ali mais estrangeira do que em qualquer lugar, de sua exploração, soube desviar [détourner] imediatamente a linguagem exterior dos senhores para poesia e modo de ação. Convém fazer, respeitosamente, o estudo da expressão dos congoleses nesse período, para aí reconhecer a grandeza e a eficácia – cf. o papel do poeta [Patrice] Lumumba – da única comunicação possível, que, em todos os casos, acompanha a intervenção nos acontecimentos, a transformação do mundo.
Ainda que o público seja fortemente incitado a pensar o contrário, e não somente pelos mass-media – a coerência da ação dos congoleses, enquanto não se venceu sua vanguarda, e o excelente uso que eles fizeram dos raros meios que detinham contrastam exatamente com a incoerência fundamental da organização social de todos os países desenvolvidos e sua perigosa incapacidade de encontrar um uso aceitável para seus poderes técnicos. Sartre, que é tão representativo de sua geração perdida, no sentido de que conseguiu ser, por si só, ingênuo em face de todas as mistificações entre as quais seus contemporâneos faziam sua escolha, decide repentinamente agora, em uma nota do número 2 de Méditations, que não se pode falar de uma linguagem artística dissolvida que correspondesse a um tempo de dissolução, pois “a época constrói mais do que destrói”. A balança do quitandeiro pende para o mais pesado, mas é a partir de uma confusão entre construir e produzir. Sartre deve observar que há hoje sobre os mares uma mais forte tonelagem de navios que antes da guerra, apesar dos torpedeamentos; que há mais imóveis e mais automóveis, apesar dos incêndios e das colisões. Há também mais livros, já que Sartre viveu. E, no entanto, as razões de viver de uma sociedade se destruiram. As variantes que, das razões de viver, apresentavam uma mudança factícia duram somente o tempo de um chefe de polícia, e depois reencontram a dissolução geral do antigo mundo. O único trabalho útil está ainda por ser feito: reconstruir a sociedade e a vida sobre outras bases. As diversas neofilosofias das pessoas que reinaram durante tanto tempo sobre o deserto do pensamento supostamente moderno e progressista não conheciam estas bases. Seus grandes homens não irão nem mesmo ao museu, porque este será um período muito vazio para os museus. Eles se assemelhavam todos, eles eram os mesmos produtos da imensa derrota do movimento de emancipação do homem, no primeiro terço deste século. Eles aceitavam esta derrota, é o que os define exaustivamente. E até o extremo, os especialistas do erro defenderão sua especialização. Mas esses dinossauros da pseudo-explicação, agora que o clima muda, não terão mais nada a pastar. O sono da razão dialética engendrava os monstros.
Todas as idéias unilaterais sobre a comunicação eram evidentemente as idéias da comunicação unilateral. Elas correspondiam à visão de mundo e aos interesses da sociologia, da arte antiga ou dos estados-maiores da direção política. Eis aí o que vai mudar. Nós conhecemos “a incompatibilidade de nosso programa, enquanto expressão, com os meios de expressão e de recepção disponíveis” (Kotányi). Trata-se de ver ao mesmo tempo o que pode servir à comunicação e a que pode servir a comunicação. As formas de comunicação existentes e sua crise presente se compreendem e se justificam somente pela perspectiva de sua ultrapassagem. Não é preciso ter um tal respeito pela arte e pela escrita a ponto de querer abandoná-las totalmente. E não é preciso ter um tal desprezo pela história da arte ou da filosofia modernas a ponto de querer continuá-las como se nada fosse. Nosso julgamento é desiludido porque é histórico. Todo uso, para nós, dos modos de comunicação permitidos, deve, portanto, ser e não ser a recusa desta comunicação: uma comunicação que contém sua própria recusa; uma recusa que contém a comunicação, isto é, a transformação [renversement] dessa recusa em projeto positivo. Tudo isso deve levar a algum lugar. A comunicação vai agora conter sua própria crítica.
Tradução: Emiliano Aquino