Gaza, a traição dos sábios

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Mezri Haddad é escritor e filósofo tunisiano. Membro de Centre de Recherche sur la Pensée Antique (do CNRS – Centre National de Recherche Sociale) e do Centre d'Histoire des Sciences et des Philosophies Arabes et Médievales (CNRS). Publicado no Le Monde.
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Bem mais que o espetáculo trágico das crianças retalhadas e as famílias dizimadas, o que é incompreensível e insuportável é o mutismo, na França, dos arcanjos da liberdade e dos direitos do homem.
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Foram vistos mobilizando-se pelos chechenos ou pelos bósnios – o que é bem honroso –, mas por que se calam sobre o massacre diário de populações civis palestinas? Porque não denunciam, com o mesmo ardor humanista e a mesma tomada de consciência, os atos criminosos do exército israelense em Gaza?
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As centenas de mortos, na maior parte dos civis, e os milhares de feridos são seres inferiores ou não pertencem a esta humanidade tão cara aos universalistas, de modo que a campanha de punição coletiva da qual são hoje vítimas seja tratada com tanta indiferença? E, mais graves que esse omertà, são os propósitos escandalosos de alguns fariseus que estabelecem uma responsabilidade simétrica dos culpados e das vítimas, dos que matam e dos que morrem às centenas.
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Este que faz essas perguntas não é prosélito das causas integralistas, nem um zelote do ativismo terrorista, nem um miserável consumidor do veneno anti-semita.
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Contra estas três necroses mortais que corroem alguns de meus correligionários e que são tão contrárias ao Islã, bati-me ssumindo riscos. Sempre que as circunstâncias exigiram-no, não hesitei a repreender os meus, em nome do que tomava por valores universais, em nome de uma coexistência pacífica entre israelenses e palestinos, em nome de uma confraternização entre judeus e muçulmanos. Denunciei a impostura democrática que levou o Hamas à cabeça de Gaza. Temia pelo já agonizante processo de paz, temia o choque das civilizações, apreendia-me o totalitarismo teocrático que os habitantes de Gaza deviam suportar, isolando-os do resto do mundo.
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O Hamas não teve o tempo de transformar Gaza em inferno. Israel e Egito, com a cumplicidade ativa dos Estados Unidos, precipitaram este desastroso destino. Durante dois longos anos, como os iraquianos antes da queda de Saddam Hussein, 1,5 milhão de palestinos foram postos em quarentena. Gaza tornou-se “uma prisão a céu aberto”, reconhecia Stéphane Hessel.
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Nenhuma possibilidade foi dada aos líderes do Hamas de negociar com “o inimigo” que o tinha outrora e há pouco sustentado contra o Fatah, a exemplo da administração americana no seu apoio à Bin Laden contra a URSS! À época, os estrategistas de Israel e “os terroristas” do Hamas propunham-se assim bem para isolar Yasser Arafat, humilhá-lo e despojá-lo dos atributos do poder! Os atentados suicidas do Hamas tinham pagamento. Israel assim reforçou a legitimidade martirológica do Hamas quebrando a legitimidade histórica de Arafat, duplo fiasco que conduziu à apoteose eleitoral da organização islamista. E Israel continuou com o herdeiro sem herança em que se tornou Mahmoud Abbas.
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O único compromisso que Israel, sob a insistência do Egito, terminou por conceder, foi a assinatura da trégua de seis meses com o Hamas, em contrapartida de um levantamento muito controlado do bloqueio [militar à faixa de Gaza]. Mesmo em doses homeopáticas, o bloqueio nunca foi suspenso. Muito menos para apressar o fim do calvário dos habitantes de Gaza que para manter a sua imagem de protetores da viúva e do órfão e de resistentes inflexíveis à “entidade sionista”, os maximalistas do Hamas terminaram por cometer o irreparável: a ruptura da trégua em 18 de dezembro.
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É esta uma razão suficiente para Israel lançar-se nesta impiedosa guerra punitiva contra qualquer população tomada por refém pelos seus próprios líderes? Sabe-se o que vale a vida de um homem ou uma criança na ideologia sacrificial do Hamas. Mas como os líderes israelenses podem considerar a vida dessas crianças com o mesmo desdém?
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De acordo com Montesquieu, “o direito das gentes é fundado naturalmente no princípio de que as diversas nações devem fazer-se, na paz, o maior número de bem, e, na guerra, o menos de mal que é possível”. Em tempos de paz, Israel impôs à população de Gaza um bloqueio cruel e desumano; em tempos de guerra, o potente exército desse país não hesita em matar cinquenta civis para atingir um combatente do Hamas. Em outros termos, eliminar os combatentes do Hamas pelo que fazem, e matar os habitantes de Gaza pelo que são. É isso, a equidade e a moralidade?
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Sem desgostar a André Glucksmann, efetivamente houve desproporção entre o erro cometido e a punição infligida. Alinhar uma força militar das mais sofisticados e massacrar em doze dias mais de setecentos palestinos porque o Hamas lançou alguns mísseis caseiros que fizeram quatro feridos e alguns estragos materiais, isso chama-se efetivamente desproporção e desmedida. A hybris (desmedida) é filha de Némesis (vingança), e “a desmedida, amadurecendo, produz o fruto do erro e a colheita que produz é feita apenas de lágrimas”, escreveu Ésquilo.
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Nada pode justificar tal desencadeamento que deixa atrás de si somente ruínas, desolação, ódio e candidatos aos suicídios. Nem as razões vilmente eleitoreiras em Israel nem as operações vagamente táticas para testar a descontinuidade eventual ou a continuidade provável da futura administração americana na sua gestão do conflito israelopalestino. Quanto à lenda do pequeno Davi contra o maldoso Golias, é obsoleta e anacrônica. Porque ainda que vários inocentes civis tenham sido atingidos pelos abomináveis atentados suicidas, há muito tempo que a segurança do Israel não é mais ameaçada. Et pour cause, em termos de potência militar e de dissuasão nuclear, Israel pode riscar do mapa quem quiser e quando quiser.
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Não é gostar do Israel não lhe “esbofetear o imprudente patriotismo”, como dizia Zola. Gostar do Israel é, a exemplo de Hannah Arendt ontem, de Tzvetan Todorov, de Gideon Levy e tanto intelectuais israelenses de hoje, “dizer-lhe a verdade, ainda que isso lhe custe. Sobretudo se isso lhe custa”, como dizia Hubert Beuve-Méry, fundador e diretor do Monde.
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Gostar desse Estado nascido após o inexprimível Holocausto é pô-lo em guarda da embriaguez da potência e da impunidade. “Israel sempre ganhou as guerras e perdeu a paz”, dizia o ilustre Raymond Aron. Não se enganou: com aquele que lhe assegurou tantas guerras, Itzhak Rabin, Israel precisava ganhar a paz. Assassinaram-no e, com o seu desaparecimento, a esperança de uma paz duradoura evaporou-se. Mas cedo ou tarde, quando as armas se calarem e cessar o derrame do sangue dos palestinos, com ou contra a vontade de Deus, o destino do povo hebreu cruzará de novo a vontade de um profeta.
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